Comecemos a consciencializar-nos: vem aí a crise a sério. No outro dia alguém me perguntava, questionei-me só depois se em estilo apenas retórico que ignorei, se com convicção: - O que achas que isto significa?
Rapidamente, num flash, voltei à minha infância de média burguesia e disparei: - Acho que quer dizer que vamos começar a contar tostões a sério. Vamos ter de começar mesmo a poupar, em lugar de pedir crédito, que será cada vez mais caro e dificilmente concedido. Vamos consumir, apenas, produtos brancos no supermercado mais perto de nós, que a gasolina para ir aos hiperes pesará nos custos das contas dos hipermercados. Deixaremos se comprar seja o que for por impulso - leia-se que não seja estritamente necessário. Vamos imprimir cada vez menos fotografias de viagens e das mil poses divertidas dos nossos filhos. Passaremos a ir aos restaurantes estritamente em dias de festa - e teremos mesmo que deixar de considerar certas datas como merecedoras disso (ex:não nos vemos há tanto temo, vamos jantar um dia destes). O dinheiro disponível para os concertos, peças de teatro e cinemas vai escassear. A Zara e a feira de Carcavelos começarão a facturar mais relativamente à Benetton e à Lanidor, mas menos do que facturavam antes, ou até do que facturam ainda hoje. As férias dos nossos filhos decorrerão mais em casa e/ou na Costa da Caparica do que no Algarve. As viagens de avião passarão a ser racionadas - eu viajei de avião pela primeira vez já tinha 25 anos, o meu filho, ainda não tinha quatro. Deixaremos de fazer escapadinhas de fins de semana. As novidades dos gadjets, que parecem ser hoje imprescindíveis para a maioria das pessoas, jazerão nas estantes por bem mais tempo, sem comprador. As editoras serão mais parcas nas suas publicações e cabeleireiros deixarão de pulular. Os presentes para os nossos filhos vão cingir-se a datas festivas, aniversários e Natal e não porque sim, ainda que todos garantamos já hoje uns aos outros que até nem lhes damos muitos. Os presentes para os amigos deixarão simplesmente de existir, substituídos por um sorriso e um beijo ou abraço...
Olhamos para este cenário e parece-nos, do alto do nosso pensamento burguês, muito negro. Mas negro não vai ser isto; que isto tive eu na minha infância e grande parte da juventude e não me lembro de me sentir particularmente infeliz por isso.
Concordo com Peter Singer quando, no livro «Como havemos de viver» diz que, a partir de um determinado nível de conforto, mais riqueza não conduz necessariamente a mais felicidade. A pequena-média burguesia, se e quando consciencializada de que o seu nível de vida terá de recuar porventura ao do momento prévio ao boom económico dos anos 80, acabará por não ser particularmente infeliz. Já houve muitas «Belle Époque» e muitas fases de crise e sempre se sobreviveu muito razoavelmente. Bastará que nos lembremos dos períodos de guerra europeia e das sucessivas crises do petróleo dos anos 70.
Nós cá nos aguentaremos, portanto, estou certa, desde que saibamos fazer contas, controlemos os consumos e evitemos o crédito. E, com todos no mesmo barco, será mais fácil, a não ser para aqueles a quem a inveja dos mais ricos, cegue.
Quem padecerá verdadeiramente serão certamente os já agora menos afortunados: pessoas de idade, que trabalharam a vida toda e com reformas de miséria (não quero saber se é frase feita, é a verdade), desempregados, jovens que com cursos superiores, ou sem eles, que não conseguirão sequer um emprego numa cafetaria. Para eles, esta crise há-de significar seguramente a situação que vi relatada aqui há uns meses no «Público»: duas senhoras de idade que tinham ido a um supermercado e conseguido comprar dois pequenos pães e um iogurte para as duas. Ou aquela outra, de que me falaram ontem, que fora ao médico do SNS, mas que não podia comprar o antibiótico que o mesmo receitara, porque simplesmente não tinha dinheiro para o efeito.
O nível de vida desta pessoas baixará do «limiar mínimo de conforto» que lhes garantiria, apesar de tudo, a sua felicidade. E isso vai transformar Portugal num país profundamente angustiado com uma classe rica que permanecerá rica, a média passando a remediada, a remediada a pobre e a pobre engrossando as fileiras, já agora infindáveis ainda que envergonhadas, de miseráveis.
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