Acções sem espelho

Nunca tive para mim que a vida me tivesse de conceder «venturas infinitas». Sempre entendi, todavia, que o facto de sermos leais e honestos connosco e com o outro em geral, nos seria retribuído em igual medida.
Não aprendi com a História, portanto. Erro maior, este, como é bem de ver. Temos de aceitar, não apenas racionalmente, mas em consciência, que não é necessariamente assim, sem ressentimentos e apenas por recurso a um conhecimento mais aprofundado do que seja a natureza humana.
É imperioso reconhecer, em bom rigor, que nos movemos todos por critérios éticos e sociais diferenciados, mas também a inevitabilidade de as coisas mudarem, de alguns ficarem para trás, de se beneficiar uns em detrimento de outros, de haver paz e guerra...
Ninguém nos prometeu um paraíso. Ninguém nunca nos garantiu que nasceríamos para sermos tratados com justiça, nem que lograríamos ser equitativos em todas as nossas acções.
Importante mesmo é que - independentemente das voltas de vida - nos abstenhamos de responder na mesma moeda, que, em suma, se privilegie a ética em cada um dos nossos actos.
Temos de ser, todavia, hábeis nesta tarefa. Se em abstracto é fácil,momentos há em que essa é uma missão particularmente árdua.
Mas se a consciência disso é já um meio passo para uma aprendizagem segura do significado profundo do aforismo, «o que não mata fortalece»,importa, todavia, usar de vigilância para não retirar dele a necessidade de ganhar uma carapaça que prejudique os nossos valores e princípios, nem tão pouco, passar a recear cegamente a deslealdade alheia, olhando constantemente por cima do ombro.
«O que não mata fortalece» há-de querer significar, ao invés, adquirirmos consciência de que mesmo, ou sobretudo, os entolhos da vida contribuem para a nossa aprendizagem da essência do humano, como por exemplo, que até numa mesma pessoa, o mau não exclui necessariamente o bom e vice versa ou que a justiça é um conceito profundamente subjectivo.

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A este propósito, nunca me esqueço de que, um dia, ouvi uma mãe de um filho que, por razões que desconheço, considerava ingrato, arrepender-se amargamente das melhores folhas de agrião que escolhera para as suas sopas, em criança. Para ela, havia ali uma injusta não retribuição...apreendi nesse dia como a nossa subjectividade pode assim driblar candidamente a nossa razão, tratando de forma igual, situações que deveriam ser colocadas em planos objectivamente diversos.
Assim, uma apreensão tão inteligente quanto possível da vida e seus contornos há-de induzir-nos a perceber que, se será raro um determinismo nas acções humanas naquele tipo de planos desnivelados em que a nossa subjectividade tende erroneamente a compará-las, esse nexo de causalidade também não verifica necessariamente nos actos praticados em planos similares. Isto é, a bondade não gerará necessariamente a bondade, a lealdade a lealdade, o despojamento em favor de um bem comum, igual atitude da parte do outro.
Por outras palavras, se fôssemos todos e as nossas respectivas acções o espelho uns dos outros, só haveria pessoas boas, eticamente irrepreensíveis, gratas e sensatas ou, ao invés, más, eticamente desastradas, injustas e desprovidas de saudável
common sense.
Ora, qualquer aluno do quarto ano que tenha umas vagas luzes da história de Portugal, intuirá que isso é verdade...e que até é bom que o seja, em benefício da evolução das civilizações. Bem poderia a mãe de D.Afonso Henriques ter escolhido as melhores folhas de agrião para ele, que sempre o jovem se teria revoltado contra ela e declarado a independência de Portugal.
E até mesmo no nível conceptual mais elaborado, teremos de reconhecer que a deslealdade e a traição integram a História da Humanidade e que nós, como os nossos antepassados e os que nos seguem, temos sempre na mão - qual criança do poema - o mundo, essa bola colorida que, também por imperativo dessas traições, continuará até ao fim dos séculos a pular e a avançar.

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Não pretendo ser conclusiva com estas palavras. Sinto, actualmente, e mais do que nunca, que esta é uma equação de termos incertos e que a incógnita está até mesmo na solução que cada um encontrará para a mesma.
Contudo, e para usar mais um aforismo, creio sinceramente que não importa o que nos acontece, mas as respostas que, mais cedo ou mais tarde, acabaremos por encontrar para as chatices com que a vida nos surpreende.
E creio, acima de tudo, que se nos pautarmos por critérios e valores claros, mas com a consciência do que nos diferencia dos outros e distingue os outros entre si, e se o fizermos da forma mais objectiva possível, se desvanecerão as confusões em que as agruras da vida tendem a mergulhar-nos.
Em suma, impõe-se um exercício intelectualmente lúcido e honesto de análise do «eu» e do «eu dos outros» que, acredito, acabará, mesmo que tão só a longo prazo, por restabelecer o nosso lugar no mundo e, porventura, a nossa paz de espírito.

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