O mercenário

- Que idade tens, avô?
- Setenta e sete.
- Setenta e sete? Pensei que fosses mais velho.
- Às vezes sinto-me mais velho. Mas não sou, tenho só setenta e sete, enfim, a caminho dos setenta e oito.
- Foste sempre assim...velho?
- Ah, não, meu filho...claro que não. Alturas houve da minha vida em que me senti mesmo bem mais novo do que era na realidade. Mas depois veio a guerra...
- Qual guerra, avô?
- A minha guerra.
- Não estou a ver, avô. Que guerra? Não estiveste no ultramar, não?
- Não, claro que não. Não sou assim tão velho. Falo da minha guerra. Duma guerra só minha, que inventei, que criei.
- Não percebo.
- Às vezes, por tédio, por fuga às responsabilidades, para nos sentirmos para sempre jovens, por destino, sei lá, alistamo-nos, como mercenários, numa guerra qualquer.
- Mercenários?
- São soldados que, em troca de um soldo, de dinheiro, servem a causa de uma guerra que não é sua.
- Combateste numa guerra, por dinheiro? Precisavas de dinheiro?
- Não, não...não precisava de dinheiro. Talvez achasse que precisava de paz comigo mesmo.
- E foste para uma guerra?!
- Às vezes fazemos coisas como essas, só porque não encontrámos paz em nós próprios. É uma fuga, percebes? Pensamos que não nos importa, porque afinal a guerra não é nossa. É dos outros. Servimos, no fundo, aqueles que pensamos que são os nossos interesses. Os nossos interesses são o nosso soldo, o nosso pagamento.
- Ah...e depois, o que nos acontece?
- Depois já lá estamos e começamos a ouvir as bombas cair. Pouco importa. Somos invencíveis e a bem de ver a guerra não é nossa. Mata, mas não a nós, apenas os outros.
- E não sofremos?
- Não, no início, não. Pensamos para nós mesmos, que aquelas pessoas que morrem pelas nossas balas não nos dizem nada e continuamos a receber o nosso soldo, aqueles nossos interesses, entendes?
- Então ficamos bem.
- Muito bem mesmo. Sentimo-nos leves. Livres das peias que antes nos prendiam. É um sentimento de liberdade. É bom. Temos de dar uns tiros, gerir situações inesperadas, protegermo-nos das balas que nunca sabemos se nos atingirão. Mas continua a ser uma guerra dos outros.
- Parece-me bem. Como se fosse um jogo, daqueles que eu gosto de jogar na play station.
- Isso, mais ou menos. O risco não é nosso, é daqueles «bonecos».
- Mas vamos então ser jovens a vida inteira.
- É o que nos parece, de facto. De início temos a certeza de que é assim e que vai continuar a ser para sempre...mas um dia, as coisas mudam. Percebemos que morreu, atingido por uma bala disparada da nossa própria arma, um amigo que nos era querido e que nos queria bem. O soldo parece de repente mais pequenino, mais reduzido. Estamos mais sozinhos. E a guerra, de repente, não é só dos outros, já é nossa também.
- Voltamos, portanto, ao ponto inicial. Com peias e sem paz.
- É, parece-me que sim. O sentido da guerra muda. Passamos a bater-nos por uma causa que não escolhemos inicialmente, de que não gostamos, mas que não temos outro remédio se não defender. Se o houvessemos antecipado talvez nunca nos tivessemos alistado. Quando percebemos isso ficamos muito velhos.
- E sem respeito por nós, avô?
- A partir daí, continuamos mercenários, porque nos mantemos a defender exclusivamente os nossos interesses, mas nessa altura já sabemos que perdemos muito do que de mais importante tínhamos antes de nos alistarmos. Tudo perdido por um desvario que não mediu consequências.
- E o respeito por nós próprios, avô? Afinal, matamos e matámos pelos nossos exclusivos interesses.
- Damos com ele, talvez mais tarde, também morto, ensanguentado, sem possibilidades de regresso à vida.
- E então?
- A partir daí é só uma questão de sobrevivência, entendes? Disparamos em todas as direcções, defendemo-nos à toa, desesperados. Depois, a guerra acaba. Todas as guerras têm um fim. Pelo o resto da nossa vida talvez procuremos a redenção, mas sempre sem certeza de a encontrar.
- Mas não cometemos, afinal, nenhum crime, avô. Nessa guerra, se é imaginária, não matámos, de facto, ninguém.
- Não, filho, suponho que não....

1 comentário:

io disse...

suponho que não, como quem diz, morre-se e mata-se mais do que se pensa, não é amiga?