Encompassing the globe

Biombo Namban- Museu Nacional de Arte Antiga

Visitar a exposição Portugal e o mundo nos séculos XVI e XVII - Encompassing the globe é um deleite. Não tanto por revelar até que ponto os portugueses deixaram marcas pelas terras que foram descobrindo e conquistando - o que qualquer aula de História do oitavo ano deixará bem evidentes - e pelo modo como dá a conhecer como «os outros» nos viram mas, e sobretudo, por demonstrar como outros povos interagiram entre eles, sem se conhecerem, através dos portugueses. Trata-se de uma exposição que realça os primórdios da comunicação à distância, na realidade. E o facto de ter sido concebida por estrangeiros - foi «inventada» nos EUA - contribui certamente para isso.

Um olhar superficial da tapeçaria que D. Manuel I mandou tecer para celebrar a chegada dos portugueses à Índia revela à evidência que foi concebida apenas sobre relatos das Índias: muitos dos animais são ainda mitológicos e os indianos, com traços totalmente europeus, surgem apenas «disfarçados» com turbantes. Um olhar mais atento - propiciado por uma competente chamada de atenção da guia - destrinça o lado subjectivo da cena: a curiosidade mútua dos ocidentais pelos indianos e vice-versa.

A evolução da cartografia não é uma surpresa, mas a forma como é revelada é fascinante. A exposição evidencia-a através de vários mapas, concebido o primeiro (ainda florentino) de acordo com os padrões do «conhecimento do mundo na antiguidade clássica» e os seguintes já espelhando as sucessivas descobertas portuguesas. Os segredos, mistérios, espionagens e manifestas correcções de erros que o assunto gerava, servidos por uma adivinhada Sala da Carta Padrão de Lisboa (que poderiam levar dois a três anos antes de serem revelados) conferem suspense à história.

A ideia do «paraíso perdido» reencontrado na luxuriante vegetação das terras brasileiras leva à questão: seria possível que tivéssemos olhado para os papagaios como aves do paraíso só porque falavam, e aos índios como encarnações de Adão e Eva por andarem nus e como tal sem qualquer noção do pecado? Pois assim parece.

E, ainda nesta linha, a forma como o índio brasileiro passa de «bestial a besta» é surpreendente. Num primeiro quadro ele é apresentado até como um dos três Reis magos que adoram o menino Jesus; num segundo é já a encarnação do demónio num cenário de inferno em que europeus são sujeitos às penas do dito: o canibalismo teria sido supostamente descoberto e lido, não como significando a posse do inimigo, mas como uma violação das regras judaico-cristãs.

A Europa no topo do mundo. A chamada «tapeçaria das esferas» revela o globo inclinado a 45 graus, para mais facilmente ser abençoada pelos Deuses e iluminada pelo sol que, pequenino, transmite a visão ainda geocêntrica do universo.

E assim a exposição vai caminhando sempre no sentido de patentear as influências mútuas das peças de arte concebidas em África, na Índia, na China, no Japão bem como o incontornável Brasil, para o que contribuiu decisivamente a rota da portuguesa Nau do Trato. Esta percorreria anualmente os entrepostos comercias de África, Goa, China, Japão (Nagasaki) - os biombos de arte Namban, que representam o impacto causado pelo portugueses no Japão são de não perder, de facto - e ainda antes de regressar a Portugal, passava no Brasil.

Dois quadros representando dois escravos africanos em terras brasileiras são absolutamente paradigmáticos das influências/confluências propiciadas por aquela rota. Ambas as telas, a da mulher ainda mais do que a do homem, apresenta-os vestidos com roupas com padrões chineses, armas portuguesas, com uma criança já mestiça, frutas brasileiras dentro de potes de origem africana....

A história da expressão «negócio da China», motivada pelo corte de relações entre o Japão e a China que os portugueses contornavam, levando produtos chineses para o Japão, que o meu grupo comentava entre sorrisos, encanta obviamente os visitantes.

Do (muito) resto fica aqui um cheirinho: os cocos das Scheicelles que se imaginava nasciam no mar e que teriam o poder de curar, por exemplo, a gota; a confusão do rinoceronte com o mitológico unicórnio de cujo pó do corno seria feito o elixir da longa vida e que desfeito o erro manteve ainda assim aquela áurea mística; a pia baptismal brasileira com um caranguejo, símbolo da Companhia de Jesus - por, alegadamente, um caranguejo numa praia ter devolvido a S. Francisco Xavier o crucifixo perdido numa tempestade marítima. Fica ainda a referência à pintura representando portugueses, à mesa, deglutindo, na Índia, refeições dentro de tanques de água, tal o calor - absolutamente surpreendente.

Os meus apontamentos incluem outras tantas curiosidades que, como estas, conduzem à imprescindibilidade de uma visita a esta exposição. Mas, atenção, talvez mais do que qualquer outra, esta é uma mostra para apreciar em visita guiada. As peças são aqui relevantes não tanto pelas suas qualidades estéticas (grande parte excelente, bem entendido) quanto históricas e este, que é o seu leitmotiv, pareceu-me particularmente omisso nas meras indicações escritas.

2 comentários:

io disse...

ok, ok: já estava convencida, mas agora, depois de te ler, já estou é cheia de pena de não ter ido antes. Vou tentar não perder. beijos agradecidos pelo belíssimo texto que, a partir de uma mera exposição, lograste esgalhar.

antuérpia disse...

O texto não faz qualquer justiça à exposição, minha querida, acredita. E também terei tido sorte na guia: duas horas de contagiante entusiasmo. Não percas mesmo!