O que deixaste abandonado regressa

Nesses dias distantes eu vagueava pelas matas
enchia espingardas de chumbo e disparava
contra o silêncio das árvores altas
só para assistir ao espectáculo dos pássaros em debandada

Experimentava uma exaltação - de que tenho hoje pudor
perante imagens que partem:
fragmentos rápidos, passagens, segredos que se apagam
nesses dias distantes nem suspeitava
a vida pode ser interminável

O que deixaste abandonado regressa - aprende-se depois
quando, por exemplo, a esquecida infância se parece
com certos cães deixados de propósito a muitos quilómetros
que ladram não se percebe como
à porta da velha casa.


Setembro, José Tolentino de Mendoça, in «De igual para igual»

2 comentários:

PV disse...

Muito belo. E meio triste, não? E sábio.

antuérpia disse...

Triste? Agora que o dizem, talvez, de facto.
Deixei-me ,apenas, levar pela imagem forte e dorida do cão abandonado a ladrar em frente à velha casa, enquanto memória de fragmentos rápidos, passagens, segredos que se apagam de uma infância há muito abandonada, mas que se percebe feliz.