Se o mundo terminasse amanhã, iríamos vê-la como a vimos quinta-feira, em qualquer local onde acabássemos por nos encontrar todos. E isso seria bom, na medida em que não estaria pior do que já está e do que sabemos que vai ficar. A rir, no prazer de estar viva e com amigos, a troçar do mundo, de si e da sua própria incapacidade, a dar impressão de que padecer de esclerose múltipla até nem a fez, faz e ainda fará chorar muitas noites. Cuidadosamente maquilhada, mais magra, mais bonita do que era quando, por que mais nova, nem precisava de o ser.
Há cerca de oito anos, quando o diagnóstico definitivo surgiu, liguei-lhe ou ligou-me ela. Contava a impressionante conversa com o médico, mas ria como se lhe tivesse sido diagnosticada uma doença surpreendente, mas curável: - Tive azar, dizia, parece que, em geral, surge até aos quarenta...tenho 38, foi por pouco.
Confesso que desliguei o telefone sem saber o que pensar, sentindo alguma dificuldade em levar a doença a sério: com aquela reacção não podia ser assim tão avassaladora!
Mas era. Prometi-lhe e fiz uma pesquisa na internet. Nem os motores de busca, nem a minha precisão na pesquisa eram o que são hoje, mas não tardei a perceber que era afinal muito grave, mesmo desconhecendo ainda aquele jeitinho da internet para o querias-saber-pois-aqui-tens-tudo-o que-de-pior-te-pode-acontecer.
Afadiguei-me, nesse dia, a tentar conhecer as possibilidades de retardamento dos efeitos da doença e acabei a entregar-lhe um molhinho de papeis que confirmavam, aliás, muito do que o médico já antecipara.
Nunca esquecerei a náusea indefinida que então senti e que se repetiu, tempos mais tarde, quando, no seu modo directo de não fugir às palavras, por mais difíceis, me confessou que lhe custava imaginar-se a passar grande parte da vida «com o corpo esticado que nem um carapau, mas no uso pleno das suas capacidades mentais».
Não acompanho muito o seu percurso. Vive longe ou, talvez melhor, fora de mão. Tem dificuldades em deslocar-se, tem marido e filha, novos amigos, está reformada, e dá apoio a uma associação de deficientes, pelo que as desculpas acumulam-se de ambas partes para não nos vermos mais vezes.
Mas quando algo vai mal na minha vida, revejo o seu sorriso inalterável, muito anterior e muito para lá da doença, e que me lança num almoço em que finalmente logramos ver-nos; o modo como me trata por Ani, quando está para aí virada; e, mais do que tudo, aquela fórmula peremptória e indiscutivelmente solidária - traduzida numa frase em calão cerrado que usa contra «os outros» - de, em meu benefício ou de qualquer amiga, nos fazer sentir vítimas risonhamente vitoriosas.
É, portanto, tão bom ser sua amiga hoje, como foi quando não sofria da doença - e, portanto, não por causa dela, nem apesar dela. Mas é decerto um privilégio conhece-la hoje assim, porque cada um dos seus dias é, na verdade, uma lição para uma vida inteira de quem surpreende o seu sorriso.
2 comentários:
Estava particularmente bonita e cheia de ela mesma: igual à A. de sempre.
Não fossem aquelas muletas e aquela dificuldade em andar e pensaria que vocês teriam alucinado ao anunciar-me o pior.
E tu és a pessoa mais bonita, solidária e profundamente amiga que eu conheço, cachopinha querida
Dói, sabes? Enfim...
Não sou nada disso, mas obrigada por o dizeres e por o seres, tu sim!
beijo
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