António Pinho Vargas e John Cage





[António Pinho Vargas - "Jornal de Negócios on line", Isabel Aveiro, 07.09.2012]

António Pinho Vargas, músico, compositor e professor, foi aluno de John Cage durante duas semanas de 1988 num seminário na Holanda. Do compositor norte-americano lembra "a simpatia", mas também o "empenho" que pedia aos músicos com quem trabalhava.
Uma "experiência única" com um homem que Pinho Vargas classifica como "um grande inventor, um grande criador de mundos, que levou a cabo uma interrogação sobre 'o que é a música'". John Milton Cage Jr. nasceu há 100 anos.Há um vídeo no YouTube que, se for encarado com sentido de humor, serve para resumir a controvérsia que até hoje a obra 4'33''gera. Chama-se "Death Metal cover - John Cage 4'33"" e é a versão "death metal" da peça de John Cage, onde um baterista "interpreta" a obra escrita em 1952. Nos comentários, há quem tenha escrito: "o vídeo tem 3'21''. Estás a tocar demasiado depressa".

No original, a obra de quatro minutos e 33 segundos de Cage é dividida em três andamentos - 30'', 2'23''e 1'40''. Durante todo esse tempo, nenhum instrumento é tocado, embora o intérprete "leia" a pauta, fazendo parte da peça todo o som ambiente e reacção da audiência. Para os seguidores de Cage, é a sua obra mais emblemática. Para os seus críticos, é qualquer outra coisa que não música.

A obra 4'33'' é "seguramente a mais falada e a menos ouvida, para além do seu próprio paradoxo", afirma o compositor António Pinho Vargas. "É uma obra conceptual muito forte na sua origem; é natural que seja sobretudo 'o conceito' que motiva os discursos - muitos - sobre John Cage". Esclarece: "prefiro, pessoalmente, algumas peças para piano dos finais dos anos 40".

Está hoje o mundo mais preparado do que em 1952 para uma obra como 4'33''? Somos hoje mais receptivos à ruptura? "Não me parece", responde António Pinho Vargas. "Diria até que a sua atitude dos anos 60 - experimentação radical, 'happenings', o som do mundo, etc. - se deslocou da área musical, onde diversos tipos de ortodoxias, tanto modernas como pós-modernas, se defrontam com alguma ferocidade, se manifestam mais em instalações de arte contemporânea. O lugar de Cage hoje é mais o Museu de Arte Contemporânea do que a sala de concertos", defende.

"Uma experiência única" António Pinho Vargas, músico, compositor e professor na Escola Superior de Música de Lisboa, foi aluno de John Cage quando tinha 37 anos e o norte-americano contava com 76 anos. "Conheci Jonh Cage no seminário de duas semanas que ele orientou no Conservatório de Haia em 1988", recorda. Quando questionado a avaliar esse tempo, responde que "a experiência foi não apenas positiva, como única". "Cage organizava o seu próprio seminário com o 'I Ching', que sempre transportava consigo, escolhendo músicos e compositores, usando ao acaso os números do 'I Ching'" [ou "Livro das Mutações", texto clássico chinês composto por um sistema de 64 hexagramas, de uso divinatório].

Dessas duas semanas vividas em 1988, quatro anos antes de John Cage morrer, António Pinho Vargas destaca, "em primeiro lugar, a sua simpatia. Estava habituado a compositores professores que transportavam consigo todo o peso do mundo e muitos encaravam uma orientação estética diversa como um defeito ou um erro que era necessário expurgar". Cage não era assim, relembra. "Guardo na memória com mais nitidez um ensaio de 'Fontana Mix' [composição de 1958 para coreografia de Merce Cunningham]. Numa obra daquele tipo - com instrumentos e sons não convencionais - Cage pedia com rigor e clareza coisas que, à primeira vista, pareciam indiferentes. Pedia o máximo empenhamento aos músicos. Essa foi uma boa lição".

"O que é a música?"Concorda Pinho Vargas com a definição de alguns, de que Cage foi "um dos maiores compositores dos EUA do século XX? "É difícil abordar a questão nesses termos", responde. "Penso que foi um grande inventor, um grande criador de mundos, que levou a cabo uma interrogação sobre 'o que é a música'. Desse modo, a sua figura, por um lado, ultrapassa o âmbito da música, pela contribuição filosófica e estética que as obras e os seus livros provocaram e, por outro, as suas peças sofrem alguma rejeição e o isolamento, por parte do mundo musical tradicional, que muitos outros das vanguardas desse período e mesmo da música de hoje em geral. As excepções a este panorama são poucas", acredita.

No sentido contrário, para os que vêem Cage hoje sobrestimado, que enquadramento mais justo deveria ser dado à sua obra na história da música? "É justamente pelo lado da invenção e da criatividade, palavras que quase desapareceram do vocabulário académico no ensino da composição, que se deve avaliar hoje o seu legado. Mostrou-nos uma nova atitude face ao som do mundo".

O som do silêncio Celebraram-se esta semana 100 anos sobre o nascimento de John Milton Cage Jr. Quando escreveu a sua "declaração autobiográfica", em 1990, o compositor norte-americano descreveu o pai como "inventor" e a mãe, redactora dos "Los Angeles Times", como alguém que "nunca estava feliz". "Nenhum dos meus pais foram à faculdade. Quando eu fui, desisti passados dois anos". Cage, impulsionado pelos pais que acreditavam que seria escritor, partiu então para a Europa, onde descobriu a arte e arquitectura clássica e moderna. De volta à Califórnia, investe na poesia, influenciado pelo estilo de Gertrude Stein. Mas a música intrometeu-se: "conheci Richard Buhlig, que fora o primeiro pianista a tocar Opus II de Schoenberg", que aceitou "encarregar-se da minha composição musical", escreveu Cage. Daí foi para Henry Cowell e para Adolph Weiss, até atingir finalmente Arnold Schoenberg. Confrontado com um Cage sem dinheiro para lhe pagar, Schoenberg perguntou-lhe: "devotarás a tua vida à música?". "Desta vez", recordou Cage na sua autobiografia, "disse-lhe que sim". Mas dois anos depois, era claro para ambos que Cage "não tinha sensibilidade para a harmonia".

Nos anos 40, e já depois de passar por Hollywood, e de encontrar o seu público através do mundo da dança, Cage entrou no Cornish College of the Arts, um marco na sua vida. É onde encontrará o coreógrafo Merce Cunningham, parceiro e parceria profissional para o resto da sua vida, e o budismo Zen, mais tarde desenvolvido pelo diálogo com o mestre Daisetz Suzuki. "Nos finais dos anos 40", descreveu Cage, "descobri por experimentação que o silêncio não é acústico. É uma alteração da mente, é uma reviravolta. Dediquei a minha música a isso. O meu trabalho tornou-se uma exploração da não-intenção". Para o levar a cabo, utilizava a aleatoriedade do "I Ching", focando a responsabilidade não na tomada de decisões, mas na colocação das questões. "As cordas, os sopros e a percussão sabem mais de música do que sabem sobre som", definiu. "Para estudar o ruído, precisam de ir à escola de percussão. Aí, irão descobrir o silêncio, uma forma de mudar a mente; e aspectos do tempo que ainda não foram postos em prática. (...) O espírito da percussão abre tudo, mesmo aquilo que estava, por assim dizer, completamente fechado".
 

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