De volta à barca do inferno


 

Costumo dizer que o T. tem um problema com a mãe que lhe saiu na rifa porquanto, gostando de  ensinar, lhe coarto às vezes a possibilidade de estudar sozinho. Eu, egoísta, me confesso: não são todas as matérias que me interessam, mas em disciplinas como Português, História ou Inglês, se percebo que a matéria foi apreendida com insuficiente conexão de factos, ideias e conceitos, diverte-me tentar dar a volta à dificuldade, e esclarecê-la pelo lado que mais o possa surpreender, a ele e, se possível, também a mim.
 
O estudo para o último teste de Português foi uma diversão nesse aspecto: se não tive outro remédio que explorar com ele o lado moralista do "Auto da Barca do Inferno", o aporte de elementos de um curso de Direito com mais de vinte anos provocaram, pela primeira vez desde que no liceu estudei Gil Vicente, uma nova e animada comunicação entre o meu neuroniozinho literário e o jurídico (induzida pela libertação de alguma espécie de "serotonina intelectual", imagino).
 
Ele é o crime de usura praticado pelo Onzeneiro (que cobrava 11% de juros sobre os empréstimos) e o crime de especulação do Sapateiro que, por ser o único a exercer a profissão, cobrava preços exorbitantes. Ele é o crime de lenocídio da Alcoviteira, a qual se recusava embarcar na barca do inferno, defendendo que "criava as meninas pera os cónegos da Sé", um dos quais acabou também embarcado na mesma nave, todos para gaudio do diabo, perante a indiferença e desprezo da "boa alma" que era o anjo e, certamente, a gargalhada geral da assistência. Por fim, os crimes de corrupção e peculato do Corregedor.
 
Curiosamente, alguns daqueles costumes que Gil Vicente tão magistralmente resume, terão passado de apenas moralmente censuráveis nos séculos XV e XVI a óbvios crimes actualmente; outros nunca foram além da segredada intolerância judaico-cristã (como a infidelidade do Fidalgo). Outros passaram a ser criminalmente, mas também politicamente, rejeitados, como a tirania dos mais fortes pelo mais fracos de que, ainda que, fugazmente, foi acusado o mesmo fidalgo.
 
Uma gostosa, inesperada e reveladora segunda espreitadela à análise caustica de costumes, de Gil Vicente, foi o que ganhei com aquele teste de Português do meu adolescente preferido.  

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