Mergulhar na água clara

Há dias em que contar até dez não é suficiente.
Nesses dias apetecia-me ter nascido mais inspirada e mais segura.
Renascer comigo e sem mim.
Que a minha cabeça pensasse melhor, não pensando de todo.
Que o mau fosse claramente mau e o bom claramente bom.
Que um sorriso fosse apenas um sorriso.
Ser inteligentemente estúpida.
Mergulhar na água clara.
Que um banho no Adriático pudesse durar afinal toda a vida e não apenas o tempo de uma recordação.
Que não me dissessem que sou demasiado inteligente, franca, confiante, crédula, leal e exigente.
Que eu não acreditasse nisso.
Que os pesadelos, que nunca tive afinal, não se transformassem, de repente, em realidades fragmentadas.
Que o meu filho tivesse aprendido a ler num livro de poesia e «com uma fisga no bolso detrás».
Que tivesse sido abençoada com uma vocação mesmo vocação.
Que alguém me tratasse finalmente como uma princesa.
Que tivesse aprendido alemão sem preguiça.
Que tivesse entendido Kant (sempre adorei a toada dura da sua filosofia, mas nunca a entendi, reparo).
Que houvesse aprendido mais, nos livros e na vida.
Que tivesse tido muitos namorados.
Que cada pensamento ou sentimento não estivesse em sua caixinha.
Que não me sentisse obrigada a ser coerente com o meu passado, as minhas exigências éticas, o meu vago rigor, com o que disse ou omiti.
Que não me justificasse tanto perante mim mesma, e a cada momento.
Que, como o girassol, rodasse, olhando o sol num prado alentejano.
Que, cedo pela manhã, corresse para a janela para cheirar a madrugada (é o melhor odor do mundo, o da madrugada - porque o faço tão raramente?).
Que me colocassem uma manta nas costas ao primeiro arrepio adivinhado.
Que deixasse de chorar lágrimas sem lágrimas.

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