A febre dos livros da Anita

No dia em que fiz seis anos estava em casa da minha avó. O meu avô longe, em terra distante e distantes ainda as constantes disputas entre eles.
Eu, com o meu vestido curtinho, acetinado, azul bebé com bolinhas brancas.
Eu, de cabelo curto, como a minha mãe gostava e que eu só achava graça no dia em que o cortava porque ficava igual ao meu irmão.
Eu, no quarto da minha avó, sozinha com a excitação dos seis anos, desse número afinal já respeitoso de permanência no planeta terra.
Eu, no quarto da minha avó com o seu eterno ainda que ligeiro odôr a cânfora. Baixei-me para apanhar qualquer coisa e quando me levantei, dei comigo a meio corpo, reflectida no espelho.
Senti-me tão...eu. Tão simplesmente, e pela primeira vez, eu. Nem bonita, nem feia. Nem feliz , nem triste. Baixei-me de novo só pelo prazer de me levantar e rever aquele momento em que a minha imagem surgia de novo repetida no espelho.
Pois bem, ali estava, senhoras e senhores: Eu!
Uma menina que se sentia nesse momento especial, mas apenas porque ía fazer seis anos, e porque para a festa que os celebraria estavam convidados todos os meninos do bairro da minha avó onde eu passava férias (e passaria ainda durante muitos anos).
No mais, apenas uma menina. Uma menina como todas as outras meninas (engraçado como esse sentimento de pertença ao «mundo do igual aos outros» foi e veio ao longo da vida, umas vezes de bem comigo mesma por causa disso, outras vezes de mal exactamente pelo mesmo facto).
Foi nesse dia, marcado por essa descoberta ínfima e imensa do Eu, que encontrei igualmente aquele que acabou por ser o meu vício de ainda alguns anos. O vício de coleccionar os livros da Anita.
Não me perguntem se não tinha tido livros antes. Claro que tinha. Lembro-me vagamente de um do Nody versão não computorizada que agora entusiasma a criançada e de que aparentemente já ninguém se lembra; um de um Pato amarelo e outro de uma vaquinha malhada.
Mas esses eram, acho, apenas não mais do que brinquedos. O estado deles era o de amarfanhados e semi rasgados e o local onde podiam ser encontrados, algures entre bonecas descabeladas e peças de lego soltas.
Nesse dia dos seis anos, a oferta do livro«Anita no carrossel» marcou, todavia, a diferença.
Teve, então, início a febre de os coleccionar a todos (exercia mesmo chantagem sobre a minha mãe para que mos comprasse assim que saíssem) e de, incessantemente, os ler e reler.
Ainda hoje recordo com uma nitidez impressionante de muitas das imagens deliciosas que vi e revi nos seus pormenores até à exaustão.
Com as suas lombadas amarelas passaram a ser guardados em local distinto e bem destacado relativamente aos restantes brinquedos e livros. Um, dois, três, contava-os mil vezes: no «Anita dona de casa», os pais saiam de casa por um dia e deixavam a Anita e o irmão em casa (o que não se pensaria disso hoje) e os petizes cheios de iniciativa tomavam conta da casa - nunca esquecerei a pinta de graxa com que o irmão Pedro ficou no nariz, quando ambos se deitaram à tarefa de engraxar sapatos. No «Anita vai às compras» a miúda visitava um armazém tipo corte inglês, versão encantadora; no «Anita no campo» deliciava-se a acampar e a saltar em cima de um colchão insuflável que fazia inveja às amiga que dormiam em colchões quentes de penas (sic ou pelo menos quase); no «Anita na Quinta» apanhava suculentas cerejas com a sua amiguinha «Berta» (quase apostaria que era esse o nome dela) e naquele que creio, seria o meu preferido, o «Anita na praia» recordarei para sempre aquela ilustração deliciosa e única da Anita com um gelado de morango que ainda hoje me faz crescer água na boca.
Sinceramente, creio que pelo menos alguns deles ainda os tenho nas minhas prateleiras...mas quase que instintivamente recuso-me a prestar-lhes uma visita. Não me apetece que o meu olhar adulto e já politicamente correcto desconecte tão deliciosas memórias.

2 comentários:

io disse...

eu só tive 2 ou 3 que venerava: Anita mamã e Anita no Teatro eram os meus preferidos. Promenitórios daquilo que nunca alcandorei ;-). Também eu prefiro guardar a memória desses livros do que estragá-la com este nosso olhar, por vezes, tão desencantado. Agora se pudesse fazer um link ... fazia um post sobre este assunto cativante.

Anónimo disse...

Ah...mas tu podes perfeitamente fazer o post, mesmo sem o link. À vontade, minha querida. Aposto que vou adorar a tua versão. Força! Mas primeiro, Cuba, hem? ;-)