E se com a vida começasse um sonho?

O meu petiz de dez anos. Qualquer composição sai-lhe sempre perra. Como se não se questionasse, como se a sua criatividade estivesse embutida, paralisada.
Sempre lhe tentei incutir auto-confiança. Assegurar-lhe que sabia que podia pensar mais longe se deixasse de se preocupar exclusivamente com futebol e jogos electrónicos e lesse mais, visse mais filmes com histórias imaginativas, peças de teatro...
Dizia isto e questionava-me se não estaria a transmitir-lhe como certeza qualquer coisa que não passaria de um mero desejo meu.
Há pouco, num acesso de birra por não querer estudar o modo conjuntivo dos verbos, acabei por parar a ouvi-lo estarrecida.
Que se tenha questionado sobre o sentido da sua vida, sobre o seu estado de espírito e felicidade actuais e até sobre o sentido da vida em geral se acaba tudo na morte...enfim. Admito que uma cabecinha de dez anos por mais despardalada que possa parecer, e numa fase complicada da vida como a que está a passar, tenha já latentes estes pensamentos.
Todavia, e por que fiquei inicialmente calada - como fico sempre nestes casos a tentar intuir o rumo exacto que ele vai imprimir aos seus acessos de mau génio, para saber que reacção adoptar - acabei por, involuntariamente, lhe despertar uma fúria ainda maior e de repente, para minha surpresa, questões de filosofia mais pura brotavam-lhe a boca.
Não era já só a possibilidade ou impossibilidade da vida para além da morte, a que respondi como respondo sempre quanto às imensas respostas que várias religiões nos facultam, dando exemplos verdadeiros ou que eu própria invento (no fundo mesmo os agnósticos como eu acabam por ser um nadinha religiosos).
Não! Por momentos pensei que todos os filósofos do mundo tinham decidido encarnar naquele puto louro, vermelho de raiva, que me dizia, aos gritos inicialmente e em prantos depois, que afinal nós até podíamos não existir, ou que podíamos existir mas pensar que a nossa mão direita não trespassava a esquerda (e fazia o gesto), mas que podia não ser assim; que podíamos pensar que vivíamos no planeta terra, mas estarmos enganados e viver num outro lugar qualquer e sermos aqui só uma imagem da pessoa que éramos ali; ou que podíamos ser nós e uma árvore ou um qualquer animal simultaneamente e que, pasme-se, ele disse isto: que até podia acontecer que com a vida começasse um sonho que terminaria com a morte e só então passássemos a viver verdadeiramente.
Tudo isto de enfiada, olhos inchados de choro, depois de ter feito um périplo convulsivo por um só agora também revelado distanciamento relativamente às coisas do dia-a-dia: porquê que temos família, porquê que pensamos, porquê que andamos, porquê que rimos, porquê que saltamos à corda (sic!), porquê que temos de estudar e depois trabalhar se depois de morrermos ninguém se lembra de nós nem nós deles, porquê que temos filhos, porquê que há animais, porquê que o mundo evolui...
Enfim...tratei de não responder a nada disto. Deixei-o falar e no fim, beijando-o, já mais calmo mas exausto na minha cama, acabei por lhe dizer que, afinal, para quem dizia que não tinha imaginação se estava a revelar um filósofo nato e que, assim sendo, amanhã não teria desculpa para não fazer uma composição de jeito sobre tudo o que tinha estado a dizer.
Acho que ficou orgulhoso. Creio que só então se apercebeu do que tinha dito.
- Mãe, as quinze ou vinte linhas que a professora dá não vão chegar.
- Escreves todas as que precisares!
- Ah, está bem.
O telefone tocou e saí do quarto. Quando voltei, tinha adormecido, exausto. Sem jantar, nem nada.

Será que ando a ler os livros errados sobre miúdos de dez anos?

Sem comentários: