
Amizade - Picasso
«A afinidade nasce da escolha e nunca se corta esse cordão umbilical, e a menos que a escolha seja reafirmada diariamente e novas acções continuem a ser empreendidas para a confirmar, a afinidade vai definhando, murchando e deteriorando-se até se desintegrar. A intenção de manter a afinidade viva e saudável prevê uma luta diária e uma vigilância sem descanso. Para nós, os habitantes deste líquido mundo moderno que detesta tudo o que é sólido e durável, tudo que não se ajusta ao uso instantâneo nem permite que se ponha fim ao esforço, tal perspectiva supera toda a capacidade e vontade de negociação».
Zygmunt Bauman, Amor Líquido, Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos
Às vezes, ainda dou um saltinho ao blogue interrompido do Pedro Mexia. E dou com coisas como estas.
Leio e releio o extracto. E pergunto-me se não será até uma sorte quando a afinidade morre de inércia. Pelo menos, essa, existiu. Não damos connosco a admitir que nos obrigámos a acreditar que existia o que não estava lá.
Por outras palavras, questiono-me se tragédia maior não será constatar que passámos anos a fingir afinidades, a ajeitar-mo-nos a essa mentira e a esforçar-mo-nos por a manter, para um dia descobrirmos, à custa de dorida perplexidade, que se tratara de um embuste logo à partida.
Pergunto-me se esse não será o momento de queimar os álbuns de fotografias reais e imaginários, incinerando memórias dessa pretensa afinidade num delete infindo, e de esperar que o logro em que voluntariamente submergimos não se repita jamais.
Com um bocadinho de sorte, para alguns de nós esse fracasso redundará numa experiência redentora pela sabedoria carreada, saindo dela emocionalmente mais inteligentes e intuitivos.
A esses talvez seja dado viver, um dia, a verdadeira afinidade - que valerá a pena, então, vigiar sem descanso -mas já com alguém que não de plástico, que saiba retribuir amor e amizade e que, como eles, aprecie «tudo o que é sólido e durável».
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