-Mãe, ontem dei um grande remate...
- Huuumm...
-Nem imagina, vim lá do fundo...
- Huummm...
- ...aquilo era um jogo de pretos contra brancos...
- Um jogo de quê?!
- Pretos contra brancos...ó mãe, por amor de Deus, não tem importância nenhuma, não comece. É a mesma coisa que um jogo de rapazes contra raparigas, ou de turma contra turma...
- Não estou a perceber...vocês resolveram fazer um jogo de brancos contra pretos?! E tu achas que não tem importância nenhuma?
- Claro que não, mãe. É só para marcar território...
-É só para quê?
- Marcar território...
-Lindo! E tu entraste nesse jogo?
-Lá está a mãe...claro está que entrei... chato foi que um deles, um preto, cortou um branco por trás numa orelha...
-Estás a gozar?...
-Não, e no dia seguinte foi uma confusão. A mãe do branco veio e quis dar pancada no preto...
- Como?!! Dentro da escola?
-Não, isso foi cá fora. E depois veio da polícia e resolveu tudo. Giro foi nós todos: «fight, fight, fight!!».
- Como?! E tu também estavas no meio disso?
- Sim, claro.
- Claro?! Estás a brincar?
Nessa noite mudei de assunto pela simples razão que entupi...que havia de dizer a um fedelho de onze anos que me contava tudo isto na maior das canduras? O que é lhe não fora ensinado na escola e em casa que o impedisse de discernir a razão pela qual um jogo de futebol de turma contra turma, não era o mesmo que um jogo entre brancos e pretos? E que era impensável ter um filho, qual selvagem a gritar à entrada da escola «fight, fight!» naquelas condições?
Fui para a cama a pensar no assunto. Confio na sageza do meu travesseiro para a resolução destes problemas.
Na manhã seguinte, sábado, ele aproximou-se da minha cama e o discurso saiu-me de rajada. Calmamente expliquei que, num mundo perfeito, um jogo de brancos contra pretos não teria problema nenhum. Que, de facto, seria o mesmo que meninos de camisola branca, contra meninos de camisola preta, de meninos da Turma A contra meninos da turma C, de meninos contra meninas, em última análise...uma simples forma de distinguir.
Todavia, o mundo não é perfeito. Que assim que se fala em jogos de brancos contra pretos vem logo associada a expressão «marcar território», como ele viu, um de uma cor a magoar o outro e a mãe do segundo a vir tirar satisfações directamente com o que fez o mal. É que em matéria de raça, a natureza humana não presta.
Mas porquê, mãe? É ancestral, é inexplicável, filho...eu sei que tu não pensas assim (a família do meu filho é inatacavelmente «colorida» em matéria de raças, ele não concebe qualquer rancor em função das raças), mas acredita no que te digo. Esse tipo de separações traz sempre problemas, como, aliás, viste que trouxe. Promete-me que nunca mais entras num jogo desses...todos misturados, tudo bem, separados por raças, não! Ah...e nada de «fight, fight», não és um hooligan!
Saiu do meu quarto amuado e bufando com a mãe chata que lhe tinha calhado na rifa. Esperei pacientemente, lendo um livro, os minutos passarem sobre o amuo. O pior estava feito. Agora era só aguardar a reacção e contra-reagir em conformidade.
Apareceu mais calmo cerca de dez minutos depois. Olhei para ele: não tenho razão? Acho que tem. Não percebo bem porquê, mas acho que tem... Pareceu-me demasiado fácil, mas também demasiado sincero. Não entrei em histerias. Estava dito. Agora era deixar fermentar. Um dia destes monitorizaria a situação.
Não foi necessário. Esta noite, ao aconchegá-lo na cama:
- Mãe, hoje organizaram mais um daqueles jogos de brancos contra pretos...eu não entrei.
- Não foste convidado?
-Fui...mas arranjei uma desculpa. Continuo a não perceber bem, mas decidi não entrar.
-Há coisas que é melhor confiar nos pais e não fazer, mesmo que não se compreenda porquê, filho; verás que mais tarde vais compreender e dar-me razão.
- É, acho que há coisas assim: fazemos só porque os pais dizem que deve ser e depois, um dia, percebemos que eles tinham razão...boa noite, mãe.
Há dias assim...que ou são de mentira, ou descobrimos que talvez não nos estejamos a sair tão mal quanto pensávamos. Mas não tenho ilusões...ainda há muito caminho pedregoso para trilhar descalça.
1 comentário:
Há anos, mais de mil, que ando para linkar este post. :-)
E o meu belo Perseu está para aqui a dizer que este poste é genial e que não percebe por que carga de água tiveste isto escondido tanto tempo! Viva tu! Viva o teu pimpolho! Vivamos nós!
bacci
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