Um jogo de atropelar pessoas

No início, eram os contos de tradição oral. Ninguém os escrevia. Por natureza, passavam de boca em boca, de pais para filhos de avós para netos. Depois Esopo (séc. VI a.c.) terá escrito as suas fábulas morais e, muito depois, La Fontaine terá reescrito umas tantas e inventado outras mais (acho). Os valores da religião judaico-cristã - apesar de todos os defeitos que reconheço à própria religião - iam fazendo o resto, senão mesmo o principal.

Intuía-se a evidência de que a ética, sobretudo a ética das relações sociais não é inata, ensina-se. Podia ou não ser apreendida, mas não era deixada ao acaso pelos ascendentes, porque a sociedade sabia que essa atitude acabaria por destruir os seus alicerces.

Depois, a mesma sociedade urbanizou-se, sub-urbanizou, stressou-se e, não contente, ainda se subalternizou às altas tecnologias. Sem tempo, disponibilidade ou paciência, os pais começaram a deixar os filhos serem educados exclusivamente pela escola, permitindo por outro lado que o seu entretenimento, não apenas se complementasse, mas que se circunscrevesse mesmo, e apenas, à televisão, aos jogos e aos amigos com iguais interesses. Os avós, a quem era, até então, deixada quantas vezes grande parte dessa tarefa, e o faziam de acordo com os canônes tradicionais tidos por valores seguros, foram relegados para o lugar «daqueles que não percebem nada disto» porque estão «desactualizados»...

As leituras, próprias dos meios urbano-burgueses, os contos tradicionais morais transmitidos pelos avós da ruralidade portuguesa, aos miúdos com «a fisga no bolso detrás», enquanto os pais trabalhavam nos campos, desvaneceram-se, assim ,nas curvas do tempo - em, aliás, uma ou duas gerações, não mais - e agora já ninguém sabe onde está nada.

Há conceitos que, para os miúdos, já não fazem sentido. Honra, lealdade, brio, respeito, boa-educação, controlo do mau-génio, honestidade, dignidade humana, bondade e compaixão pelos outros são virtudes esquecidas, penhoradas a um passado que, tantas vezes, se despreza. Os próprios pais, criados ainda nesses valores, parecem hesitar perante um «ó mãe, o que é que isso interessa, não percebes nada disto, eu fiquei com o boneco e isso é que importa», ou qualquer coisa do género.

E não vale a pena ter ilusões de que há coisas que só acontecem aos outros. No outro dia, o meu petiz-adolescente jogava um jogo de consola inacreditável: ganhavam-se pontos a atropelar pessoas com os carros. Sou atenta, mas confesso que o facto de o jogo ter sido trazido por um amigo dele que tenho em boa conta, me fez aliviar a vigilância. Quando me apercebi, já o amigo se tinha ido embora e haviam passado a tarde naquilo. Respirei fundo, a culpa também era um pouco minha, havia que ter calma:

- Um jogo de atropelar pessoas? Mas estás louco?
- Que mal é que faz?
- As pessoas têm dignidade própria. Nem em jogos se matam gratuitamente.
- Ó mãe!! O que é que isso interessa? Acha que eu vou para o meio da rua matar pessoas? Acha que eu não sei que não se matam pessoas? Toda a gente joga isto. Isto é só um jogo.

Insisti, expliquei e acabei por desistir de o fazer entender, usando pura e simplesmente, o argumento final: estás proibido de o jogar!

Ele não lê, ou lê muito pouco, ele não vai à missa - onde, para o bem e para o mal, sempre seria desbravado algum caminho na distinção, com alguma clareza, do bem e o mal segundo os valores judaico-cristãos -a escola, apesar de mediamente vigilante, é necessariamente difusa na transmissão destes valores, os conteúdos televisivos que eles apreciam são o desastre que se lhes reconhece, os jogos de que eles gostam não têm qualquer densidade ética, muito pelo contrário, pelo que aos pais cabe em primeira linha aquela que, não nego, é a nossa principal missão - educar os nossos filhos.

O problema todavia não é fazê-lo: é fazê-lo com a firmeza necessária para contrariar a avalanche de valores negativos que, sob forma apelativa, os garotos recebem diariamente de uma sociedade submersa em consumismo e paralisada pela inércia, hesitações e, mesmo, omissões éticas repugnantes.

Mas há que não desistir, os pais não podem sucumbir ao laxismo facilitista, pondo em causa os valores sólidos que lhes foram transmitidos pelos seus próprios pais, sob pena de a humanidade acabar mesmo antes de se extinguir.

2 comentários:

Helena Araújo disse...

A minha primeira reacção ao ler este post foi: "boa! assim mesmo! isso é que é!"
Mas depois lembrei-me da minha infância. Da incrível crueldade das crianças entre si e sobretudo com os animais. De rapazes que torturavam cães e gatos, coziam bocas de sapos (aliás, isso é um must da bruxaria tão tradicional como esses contos).
Dantes não era melhor que hoje. Se fosse para escolher entre maltratar animais verdadeiros e atropelar bonecos no computador, acho que preferia os bonecos.
Dito isto, pois bem:
Muito bem, apoiado, sim senhora!
Mesmo que não se tenha razão (enfim: mesmo que haja outras razões), é fundamental permanecer fiel aos princípios. Só assim - no desgaste do debate e da imposição de limites - é que os miúdos conseguem perceber quem são, sem pressões ou ilusões do grupo.

antuérpia disse...

Era, era, Helena...os putos com a fisga no bolso de trás faziam muito isso. Era cruel e disparatado e, como tu, acho que, tudo ponderado, do mal o menos - mesmo que isso signifique que eles não saibam hoje em dia distinguir um sapo de uma rã ;).
O problema´é que, mesmo que à custa dos pobres bichinhos, sempre havia uma moral consensual que acabava por lhes ser transmitida de que era uma coisa má, «fazia sofrer as criaturas de Deus» e aquilo lá ía sendo intuído.
É muito mais difícil, hoje, explicar que matar gratuitamente bonecos, que representam seres humanos inocentes andado pela rua, tem algo de profundamente agressivo, desumano e falho de ética, porque o consenso social é aqui, ao invés, precisamente o de que «se se trata de bonecos que mal faz?»...mas podemos deixar de lhes explicar?