Do México a Portugal

A todo o vivente português, no perigoso ano 2011, faria bem ler «Viva México», de Alexandra Lucas Coelho (Tinta da China). O livro é profundamente envolvente, dolorido e cativante, sendo um caso notável de transformação do "amador na cousa amada", dizendo ela do México o que temos vontade de dizer do próprio livro: "(...) Nunca em lugar nenhum, me pareceu que tudo coexiste, tempos e espaços, cimento e natureza, homens e animais, até aceitarmos que o nosso próprio corpo faz parte daquela amálgama acre, ligeiramente ácida, de pele suada com muito chile".

O México assim descrito e nós, do outro lado do Atlântico, atónitos, desmentidos nas nossas prioridades, contrariados nas nossas convicções, hesitantes nas escolhas dos nossos caminhos. O que era seguro antes da leitura do livro, ou seja a impossibilidade de a nossa realidade se alterar radicalmente de um dia para o outro, fica a funcionar em modo de dúvida, pelo menos pelo exacto período em que perdure o seu enlevo - no meu caso provavelmente pelo tempo de rabiscar estas notas ou até que alguma mundanidade me disperse.

É um livro de extremos que de facto coexistem, e sobre os extremos de ânsia de paz social, abalada pelo terror sem desculpa - narcotráfico, violações, morte - muito para além do suportável. Deixa-nos perplexos na descrição da violência intrínseca que nenhum princípio ou valor logra contradizer, induzida pela desesperança, que seca o direito à indignação das vítimas e suas famílias, de ruídos desconexos (que o silêncio, para além de um bem raro no México, faz mesmo parte da liberdade de se ser quem se é), de excessiva densidade de enfadonhas casas construídas para a classe média dos anos sessenta. Mas é também um livro do despojamento, da compaixão (pelos imigrantes no desejo de atravesssarem para os EUA), pontilhado de gente inteligente com palavras rigorosas, desejos certeiros e visões serenas, desertos quentes e florestas gloriosas, animais exóticos (quantas iguanas!) e plantas silvestres - surpreendente, a descrição do antepassado do milho antes de ser misteriosamente modificado pelo homem, que não tem maçaroca e que é originário precisamente de Oaxaca.

Acrescem-lhe relatos de anos de histórias acumuldas de exploração, levada a cabo até por pessoas que "inocentemente" usurpam os segredos dos indígenas sobre plantas naturais, para deles lucrarem em sociedades hiper-preocupadas em prolongar a saúde por tempo tão indeterminável quanto possível, sem contrapartidas equitativas.

Todavia, o maior arrepio reside na circunstância quase teoricamente inconcebível de um país impossibilitado de retomar, na era da inelutável globalização, trilhos de antanho que provavelmente lhe garantiriam serenidade, ainda que em prejuízo de algum desenvolvimento económico (que aliás, e ironicamente porque o destino se ri dos indefesos, está assim ainda mais longe de poder alcançar).

Visto de Portugal (e do Velho Mundo, como diz), o México de Alexandra Lucas Coelho, sobretudo a cidade fronteira de Juárez, é um pesadelo por ora longínquo e que se espera nunca demasiado próximo. É-nos ali segredado o que é viver fora de um Estado de Direito, sem instituições que funcionem em benefício dos direitos e garantias dos cidadãos, sem lei ou ordem (um dia chamaram um padre para lhe pedirem ajuda para uma menina de 10 anos que tinha visto matarem três homens e a polícia a passar sem parar); o que é sobreviver com altíssimas taxas de desemprego e em bairros decompostos, porque a facilidade do comércio ambulante é preferida à trabalhosa aprendizagem e prática de um ofício, cujas vantagens são ainda anuladas pelo dumping social chinês; o que é não ter respostas para jovens desocupados e que acabam mergulhados nos meandros perigosos mas lucrativos do narcotráfico.

Destes jovens, já «na terceira geração de crianças a crescer neste modelo de desamparo, em que abrem maquilas (fábricas) e não creches e em que por vezes o duplo turno é obrigatório, há necessariamente aí um caldo formidável para o narco tráfico actuar», diz deles uma formadora de professores que «são muito poucos (...) que dizem que querem acabar a universidade e ter uma profissão. Não é como há 15 ou 20 anos, quando viam na profissão um meio de triunfar. Agora dizem: Quando for grande quero ser narco, porque eles ganham muito dinheiro».

Portugal não é o México, nem a Europa uma parcela do continente americano, entendamo-nos. Mas há histórias que importa reter, sobretudo quando são verdadeiras. E não se espere nem dos políticos, nem dos tecnocratas, a sensibilidade necessária para que a degradação social cesse em algum momento prévio à insalubridade das vivências. O direito à indignação é inalienável, mas use-se sobretudo na exigência da boa qualidade do ensino e da justiça, onde eternamente claudicamos, garantindo-se assim uma substituição dos que nos governam ou querem governar, por uma nova geração intelectualmente válida e com valores que protejam pelo menos os nossos descendentes de um caos assim sufocante.

2 comentários:

-pirata-vermelho- disse...

Nem isso'...
o México (de norte a sul há vários Méxicos, num só México) é uma singularidade sem se perceber bem porquê... possivelmento por ser inventada por quem não é de lá e resolve dar um sentido único àqueles sentidos todos
(incluindo as ausências de sentido).

Uma senhora chamada Antuérpia tem acesso incondicional ao íntimo de seja quem for... de fosse quem fosse!
Bem,
de quem quer que seja e fosse.

antuérpia disse...

É possível, mas próprio dos livros de viagens. Deles não espero uma visão absolutamente objectiva da realidade que descrevem. Não os leio na expectativa de obter o que proporciona um guia ou sequer uma reportagem.
Dito isto, caro pirata-vermelho, importa acrescentar que não vi no livro um sentido único, mas várias visões, sendo que optei por uma delas para extrapolar (porventura mais do que seria intelectualmente legítimo, admito). Mas isso não é da responsabilidade da autora mas exclusivamente minha, como é óbvio.