O sol é que nos faz

Cada nova iorquino tem (ou pelo menos tinha) um psiquiatra e exibia-o comicamente como uma medalha própria de intelectuais, leia-se, dos que pensam. Woody Allen passou por um período em que parodiava magistralmente essa mania exagerada, mas apesar de ser um realizador mais amado na Europa que nos EUA, não conseguiu, pelo menos em Portugal, vulgarizar a ideia da ida ao "shrink" - ou se calhar até contribuiu, em certas camadas sociais, para a ridicularizar ainda mais - da mesma maneira que se vai a um ortopedista porque se tem os pés tortos.

A rejeição liminar de uma visita de uma criança ou adolescente a um psiquiatra ou psicólogo é própria de muitos pais portugueses, e a desconfiança tacanha relativamente àqueles que levam lá os seus, só encontra paralelo no apreço pela iliteracia, ou quase iliteracia, salazarista, de que é paradigma a deliciosa letra da canção dos «Rio Grande»: " (...) o pai diz que o sol é que nos faz, a mãe manda-me ler a lição".

Para esse tipo de português, levar uma criança a um psicólogo ou psiquiatra é sinal de fraqueza, já que qualquer problema infantil ou de adolescente, ou se resolve naturalmente - tal como a forma de ganhar a vida na canção - isto é "com uma fisga no bolso de trás", ou com uns sopapos bem ferrados a miúdos que saem da norma e/ou alegam "sofrimentos psicológicos" que obviamente só estão na sua cabeça, e portanto são de menorizar.

Tenho mesmo ouvido pais dizerem que levar um filho a uma consulta de psiquiatria ou psicólogo corresponde a demitirem-se do seu papel de pais. Eles é que sabem o que é o melhor para os seus filhos e consideram-se aptos, apenas pela sua condição de pais, a resolverem sofrimentos psíquicos mais ou menos crónicos ou desvios comportamentais evidentes.

Curiosamente, já vi vezes demais até, muitos pais de jovens adultos a arrependerem-se mil vezes de não terem levado os filhos a especialistas na altura certa - isto é, quando algumas simples palavras ou indicações de quem sabe do seu ofício teriam resolvido, porque antecipado, problemas que mais tarde se revelam difíceis ou até impossíveis de debelar. Não me lembro, todavia, de ter ouvido nenhum pai revelar qualquer remorso de lá ter levado um filho, e ter saído da consulta com um diagnóstico de "é normal, é uma fase, a explicação para isso é simples e é a seguinte...", ou "sim, há um problema, vamos tentar resolver".

Porém, como dizia o rei ao seu conselheiro, por favor dê-me soluções viáveis, não me diga para mudar mentalidades.

3 comentários:

Jonas disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Jonas disse...

As mentalidades não se mudam de um dia para o outro :)

No consultório da psicóloga a que levo o meu filho, de 15 em 15 dias desde há cerca de um ano, vejo muitos pais envergonhados, com uma necessidade idiota de justificarem a presença das crias a uma perfeita desconhecida (eu). Não são todos, evidentemente, mas os que puxam conversa justificativa, dão sempre a mesma razão "sonhos maus", "pesadelos". Bom, ao menos vão lá :)

Eu precisei de ajuda, que para se educar uma criança é preciso uma aldeia, e eu moro numa cidade, e sou só uma. Sem traumas, sem stress :)

antuérpia disse...

:)) Curioso o que conta. A sala de espera de um consultório de um pedo-psicólogo deve ser, de facto, um excelente laboratório das emoções e preconceitos de pais injustificadamente inseguros do que deveriam encarar com normalidade.

E vem confirmar que não há mais eficaz grilheta que a que colocamos em nós próprios.

Muito obrigada pelo seu comentário.