Da vertigem de um ajustamento precipitado


É um estado de emergência total, próximo do de guerra, aquele em que vivemos? É, por isso, condição que temos de achar normal, a de que alguns tantos caiam hoje no campo de batalha da crise, para que outros sobrevivam no futuro? É por isso que, se nos preocuparmos com a mole imensa de desempregados de longa duração, no desespero do "desamparo aprendido", somos vistos como tendo falta de visão de futuro?

É neste sentido também que devemos encarar a refundação do entendimento com a troika? Um estado de urgência tal que, se for preciso, até a Constituição se altera? Nada tenho de princípio contra alterar a Constituição. Em minha opinião podia já ter sido feito. Mas é justo e avisado fazê-lo num momento em que pode ser o único escudo dos mais vulneráveis contra a devastação das suas vidas?

Fazê-lo agora, a quente, num momento de crise profunda, não será precisamente desistir de lhes dar, aos mais fragilizados, ou àqueles que, num futuro muito próximo, darão por si absolutamente impreparados para enfrentar este terramoto de Estado, o acesso a condições de vida minimamente dignas, à esperança de sequer viverem razoavelmente com muito pouco?

Suspeito intensamente da proposta de novos entendimentos que, por bem intencionados que sejam, tenham por único fim atingir as metas do déficite para 2014. As metas, sabe o governo como todos nós, são absolutamente inalcançáveis, pelo que me permito desconfiar que a "refundação", de que fala Passos Coelho, possa contribuir em mais do que uma gota de água para a redução do déficite. Antevejo, em contrapartida, um mar de desespero para uma grande parte da classe média, média-baixa e baixa, que passará a assumir para sempre a sua condição de desempregada, ou, caso mantenha ou consiga emprego, fugirá a todos os impostos que possa, porque se sente legitimada a não os pagar face aos, então, exíguos e medíocres serviços públicos à sua disposição.

A Islândia orgulha-se de ter recuperado de uma crise monumental sem ter prescindido do estado social. Mas para os portugueses, o estado social é coisa de nórdicos ricos e patéticos. Nós somos do sul, país pobre e periférico. Em Portugal, quando qualquer crise aperta, o povo, a primeira coisa que exige é a reinvenção de um Salazar, a imposição de um regime autoritário de qualquer cor ideológica, e os políticos, por seu turno, equacionam logo o desmantelamento do estado social, sem pensarem em propiciar aos mais desprotegidos, ou que nisso se transformem pela acção quixotesca de um governo, a possibilidade de viverem condignamente com as funções sociais do Estado em regime de serviços mínimos.

Preparamo-nos, portanto, para morder a mão que poderia dar aos mais carenciados algum consolo e alento para enfrentar os tempos difíceis que aí vêm. Num esforço enxangue, em lugar de negociarmos os juros usurários que nos cobram os nossos credores, insistimos em voltar ao salazarento "pobrezinhos mas honradinhos", de que falava João Galamba na discussão do Orçamento do Estado (deputado desse PS que, tal como o PSD,  geriram anteriormente o país com a irresponsabilidade de um pobre de espírito a quem saiu o euromilhões com a cumplicidade dos restantes partidos), e que Vitor Gaspar repudiou, ofendido, apenas porque, aparentemente, sofre de uma ignorância lexical tão extensa, quanto são reconhecidamente grandes os seus conhecimentos de modelos económico-financeiros, confundindo "salazarento" com "salazarismo".

Sim, há que mudar de paradigma. Recusá-lo seria alimentar um "optimismo irrealista" que teria efeitos perversos. Mas a necessidade de mudança tem ser intuída pelas pessoas, para o que é imprescindível tempo, pelo menos algum tempo. Não se muda as agulhas do raciocínio colectivo como se fossem as das linhas do comboio, e "a prioridade a um ajustamento rápido" de que falava ontem o governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, é uma leitura fria e desapiedada da realidade, que ele pode institucionalmente defender, mas que eu devo, eticamente, rejeitar.

Vivo a realidade dos meus dias, e essa diz-me que há já demasiados corpos no campo de batalha e que muitos mais se lhe juntarão. Sei que um dia esses corpos serão "retirados do quadro" - há uma cena notável no filme "Linhas de Wellington", em que o general Wellington insiste que o quadro da batalha tem demasiados corpos e sangue, e pouca glória, mandando refazê-lo. Hoje, todavia, enquanto escrevo isto, não tenho de ter contemplações para visões de generais aos quais, ainda por cima, não reconheço as capacidades de Wellington. Serei, portanto, o pintor que insiste em recriar o que vê, e não apenas o que outros querem mostrar.

Mudar paradigmas com ajustamentos rápidos é algo de obviamente ilusório e precipitado e, se o desmantelando de grande parte do estado social acabar por fazer, como fará certamente, parte desse reajustamento, é garantido que se vai, com a água do banho, a cultura, a educação, a saúde, bem como os benefícios sociais a um nível ética e socialmente aceitável, só porque é mais fácil, e sobretudo mais rápido, do que cirurgicamente eliminar ineficácias e, lentamente, deixar então que o crescimento e desenvolvimento económico permita  que os privados tomem conta de parte possível das funções do Estado.

No fim, queiram os deuses que me engane porque muito gostaria poder, daqui a poucos meses, rir-me deste post, os credores continuarão descontentes connosco, exigirão ainda mais sacrifícios do que já cedemos de barato, e nem sequer nos poderemos orgulhar de um estado social eficaz, porque nessa altura estará tão anémico quanto os seus utentes.

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