Como se algo nos tivesse sido arrancado

Depois de terem tido a então considerada brilhante ideia de, presenteando o arquiduque Maximiliano da Áustria, simultaneamente se livrarem de um elefante que, no dizer de Catarina da Áustria há mais de dois anos viera da Índia e desde então não teria feito outra coisa que não fosse «comer e dormir, a dorna da água sempre cheia, forragens aos montões, é como se estivéssemos a sustentar uma besta à argola (...)», a rainha e o rei enfrentam as contradições dos seus próprios espíritos.

Saramago desvenda as cornocópias da alma como poucos, convenhamos. Ao conhecer da tão ansiada aceitação do presente por aquele primo de linhagem, o rei D. João III acaba por confessar: Salomão (impõe desde logo que enquanto permanecesse em Portugal, assim se chamasse, e não Solimão como já o baptizara o arquiduque na carta de aceitação) «não imagina as perturbações que tem gerado entre nós a partir do dia em que decidi dá-lo ao arquiduque, creio que no fundo, ninguém aqui quer que ele se vá, estranho caso, não é gato que se roce nas nossas pernas, não é cão que nos olhe como se fossemos o seu criador, e, no entanto, aqui estamos aflitos, quase em desespero, como se algo nos tivesse sido arrancado(...)».

É assim que começa «A viagem de um elefante»: por uma viagem pelo arrependimento das almas daqueles que começaram por se querer ver livres dele.


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