Deixa de preocupar-te e goza a vida


A frase de sabedoria chinesa que tantas vezes recordo, «não se ama aquilo que não se conhece» tem uma versão ocidental. Li num artigo de opinião da Matilde Sousa Franco, saído no Público de ontem, que teria sido pronunciada por Santa Catarina de Sena e servido de lema de vida a António Sérgio: «O intelecto nutre o afecto. Quem mais conhece, mais ama; e mais amando mais gosta».

Trata-se no fundo de uma simples decomposição daquele aforismo chinês, mas talvez a sua formulação analítica o aproxime mais do seu exacto sentido, revelando-se, nessa medida, um pouco mais estimulante.

Ambas as afirmações provam-me, porém, aquilo que todos sabemos: que o amor pela cultura, pelo conhecimento, pela sabedoria, enfim, deveria constituir a cola susceptível de unir todos os povos para além das suas divergências culturais e até civilizacionais.

Será por isso que me impressionaram as palavras de ordem que, na página que antecede a daquele artigo, se escreve numa carta ao Director e que, possivelmente, só não seria já do meu conhecimento atenta, confesso, alguma desastrada e (às vezes) censurável distracção pelas coisas da informação. A de que alguns autocarros de Londres e Madrid circulam com painéis com os seguintes dizeres: «Provavelmente Deus não existe, deixa de preocupar-te e goza a vida!».

Entristece-me esta evidência com a qual provavelmente nem me deveria já surpreender, até porque a sinto ultimamente na pele. Não a de que a sociedade ocidental esteja sem «guardas» por estar a perder Deus (sou agnóstica), mas porque mantinha uma réstea de expectativa de que a ética ocidental nos salvaguardaria do despudor de frases como estas.

Como diria uma amiga minha, ainda que noutro contexto, já não há refúgios, portanto. Não podemos voltar para trás no hedonismo pelo qual nos temos guiado. É como se a nossa civilização e os valores que mal ou bem a sustentaram durante séculos, se estivessem a desmoronar em todas as frentes.

O que me preocupa agora, dirão os mais optimistas, representa tão simplesmente o fim de mais uma «belle époque» já que algures lograremos encontrar novos valores que permitirão aos modelos das sociedades actuais renascer das cinzas.

Pode ser...a bem das novas gerações e, já agora, se não se importarem, espero que da minha também. Mas permito-me algumas dúvidas porque o que intuo nas sociedades globalizadas de hoje em dia é, na verdade e precisamente, que cada vez mais o culto da ignorância (oculta quantas vezes sob uma torrente de informação dispersa e irrelevante) a qual se privilegia em benefício de um ilimitado «gozar a vida», está a calcinar o intelecto de forma aparentemente irrecuperável e, consequentemente, a destruir os afectos que através do verdadeiro conhecimento poderíamos alcançar.

Depois, o que nos ficará?

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