Quero lá saber da Kidman!

Fui ver o Austrália. Tinham-me alertado que, caso me aventurasse, tivesse em atenção que aquilo mais parecia uma produção - ainda que dispendiosa - dos Estúdios Disney. Ora, um produção disney era mesmo o que me estava a apetecer: não pensar muito, um filme épico, uma lagrimita aqui ou ali, um romancezinho bem esgalhado. Já ficaria contente.

Não fiquei, portanto, desiludida: what I was told was what I got! Percebe-se o flop e bater mais na Kidman nem vale a pena (e no Hugh Jackman é mesmo impossível - brinco, claro). No mais, o filme deixa-se ver, como se estivéssemos em casa numa tarde de domingo de tv, sem nada de melhor para fazer.

Há, no entanto, uma parte que chama a atenção. O narrador é uma criança filha de mãe aborígene e de pai britânico (o mauzão da fita, por sinal). É um miúdo delicioso, claro e aquelas nuances são manifestamente made by camomila, mas outra coisa não seria de esperar de um «filme Disney».

Todavia, e como já se percebeu, é mestiço. Chamem-me ignorante, mas nunca tinha percebido a fobia da mestiçagem. No filme, ela é evidente. O gaiato peca por não ser totalmente aborígene - a cena de ter de ser pintado de escuro para entrar numa sessão de cinema para aborígenes torna isso evidente - e por não ser integralmente britânico.

Em consequência desta sua última característica, acaba por ir parar à chamada Ilha da Missão, onde uma pia comunidade religiosa se dedica a expurgar dos pequenos mestiços as suas características aborígenes, como explica, parece-me que o próprio pai da criança, à boa daKidman. O imperialismo britânico no seu melhor, dir-se-ia.

Provavelmente, este seria um filme de onde sairia a interrogar-me vagamente, e pela enésima vez, sobre as motivações historica-filosóficas de tal desconsideração pela mestiçagem. Porém, e mais uma vez Hannah Arendt e o seu «As origens do totalitarismo» (recomendo, recomendo, recomendo e antes de mim, muitos e melhores já o fizeram) saiu em meu socorro (1):

«(...) a abolição da escravatura na possessões britânicas em 1834 e a discussão que precedeu a guerra civil norte americana encontraram em Inglaterra uma opinião pública altamente confusa - solo fértil para as várias doutrinas naturalistas que surgiram nessas décadas.
A primeira delas foi representada pelos poligenistas que, acusando a Bíblia de ser um livro de piedosas mentiras, negavam qualquer relação entre as raças humanas; o seu principal feito foi a destruição da ideia da lei natural como elo de ligação entre todos os homens e todos os povos. Embora sem estipular uma superioridade racial predestinada, o poligenismo acreditava no isolamento entre todos os povos, resultado do profundo abismo gerado pela impossibilidade física da compreensão e comunicação humanas. O poligenismo, ao explicar a razão pela qual "o Leste é o Leste e o Oeste é o Oeste e nunca os dois se encontrarão", ajudou a evitar casamentos interaciais nas colónias, a promover a discriminação contra indivíduos de origem mista que, segundo o poligenismo, não são verdadeiros seres humanos, pois não pertencem a raça alguma; pelo contrário, cada homem "misto" é uma espécie de monstro porque nele "cada célula é o palco de uma guerra civil" (...)».


Para além de três horas entretidas a constatar o esforço denodado do realizador e do argumentista por obter um sucesso de bilheteira, misturando a receita antiga dos clássicos épicos de Holywood com a atracção que, hoje em dia, o «qualquer coisa de mágico» exerce sobre tantas e insuspeitas pessoas, retirei para mim uma curiosa e inovidável ilustração daquelas palavras de Hannah Arendt.

Um ponto a favor do Austrália, portanto. Quero lá saber da Kidman!

(1) - sublinhados são meus.
(2)- Entretanto, o governo australiano decidiu pedir desculpas aos aborígenes pelos milhares de crianças que lhes foram retiradas no âmbito da política de integração levada a cabo entre 1910 e 1970. Quem sou eu para criticar. Só me questiono sobre o número de coisas relativamente às quais hoje em dia pensamos estar a agir correctamente e que motivarão desculpas também por parte das gerações que nos seguirão...

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