De boleia... a pescante

«Um resto de lua cheia dourava os incenseiros e as faias das bermas do caminho, entrava como um lança pela portinhola do cupé, acendendo o espelhinho "bisauté" que André mandara colocar a meio da vidraça que separava o interior da carruagem da caixa da boleia. (...) E, como [Margarida] tinha boa memória e aquela habilidade para línguas, lembrou-se que os espanhóis chamavam à boleia - "pescante"! Realmente o Chico e o Antonico, silenciosos e dobrados, pareciam sentados no Pesqueiro do Marraxo à espera de uma boga a picar...».

Vitorino Nemésio in «Mau tempo no canal»

Boleia?! Na conotação que me era familiar, aquela palavra não fazia sentido em nenhuma das frases. Deduzi do que se trataria, mas ouvi-me a mim própria: não presumas, confirma, que a presunção é, tantas vezes, mãe da (pelo menos minha) ignorância

O Houaiss saiu-se bem, como sempre, mas desta feita o Dicionário da Academia é que me surpreendeu (sou muito suspeitosa desta obra, confesso): a citação indicada era precisamente uma do «Mau tempo no canal», ainda que não exactamente esta.

Quantas vezes não nos detemos, e quão injustamente, no valor de um bom dicionário. A imagem que Nemésio pretendeu transmitir fica tão mais translúcida, tão mais deliciosa quando se percebe, sem margem para dúvidas, que «boleia», para além do seu sentido comum, tem também e, exactamente, o de «assento do cocheiro».

A associação de ideias, de Bidinha, dos dois condutores da carruagem sentados na boleia, ao
pescante espanhol e, por sua vez, ao Pesqueiro do Marraxo, onde os dois homens se debruçariam absortos nas suas canas de pesca...não é o paradigma de que não há viagem mais deslumbrante que a proporcionada por um livro (sobretudo se tão maravilhosamente escrito como este)?

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