contar até dez
Rascunhos de pensamentos
Excertos literários da minha vida (50)
"Em que tinham mudado as coisas? Não era o perigo, mas um elemento menos evidente que dava à noção de guerra um carácter distinto: a sensação de alguma mudança na gravidade específica das coisas. Como se a quantidade de oxigénio no ar que respirávamos se fosse regular e misteriosamente reduzindo de dia para dia."
"Clea". Lawrence Durrell. Ulisseia. Tradução de Daniel Gonçalves.
Queres sempre ficar com tudo
Estavam a separar-se.
Discutiam tudo, tudo, até para quem ficaria a propriedade do raio de sol
que, pela manhã, pintava o quarto de luz.
- Incindia sempre primeiro em mim.
- Mas detinha-se em mim por muito mais tempo, depois.
-Troco pelo fresco da noite no terraço, que troquei pela brisa da janela da cozinha.
- De que te valia? Tu nunca estavas na cozinha. Sempre na sala a beber. O que tu bebes!
A brisa é minha. O raio de sol também.
- Queres sempre ficar com tudo.
- Não é argumento. Ficas com a casa. Para mim, fica
o raio de sol,
o fresco da noite,
e a brisa da janela da cozinha.
- Vês? Queres sempre ficar com tudo.
Deflação? Medo, muito medo
Economistas alertam para o risco de deflação em Portugal
Por Sérgio Aníbal
In Público, 17.12.2012
Pela primeira vez desde pelo menos 1978, o deflator do PIB caiu em Portugal para valores negativos. Se o fenómeno se prolongar, o país pode arriscar-se a cair na armadilha da deflação
- Para o Governo e para a troika, é apenas uma redução não permanente dos custos que irá ajudar o país a reconquistar a competitividade perdida, mas são vários os economistas que vêem a recente descida da variação dos preços na economia para valores negativos como mais um sinal de que Portugal se arrisca a cair na perigosa armadilha de uma deflação prolongada.
No segundo e no terceiro trimestre deste ano, pela primeira vez desde pelo menos 1978 (o primeiro ano das séries longas do Banco de Portugal), o deflator do PIB - que mede a variação dos preços no total da economia, não apenas no consumidor - registou valores negativos.
Este resultado inédito deverá conduzir, segundo as últimas previsões da OCDE, a que, no total de 2012, se venha também a registar, pela primeira vez em décadas, um deflator do PIB negativo.
A taxa de inflação no consumidor está também a descer, tendo ficado abaixo da barreira dos 2% em Novembro, mas sendo ainda sustentada por subidas homólogas de preços significativas em bens como os combustíveis e pela subida do IVA operada recentemente.
Para Luís Campos e Cunha, professor na Faculdade de Economia da Universidade Nova, há nestes números um sinal de alerta que é necessário levar em conta. "Infelizmente, vejo essa evolução como sinal de uma "recessão com deflação". É uma combinação muito perigosa porque não temos política monetária nacional e a política orçamental só pode agravar a situação, em consequência da quase bancarrota de 2011", explica.
O ex-ministro das Finanças e ex-vice-governador do Banco de Portugal considera ainda que "a deflação possivelmente não é mais aparente e não se mostra nos preços do consumidor, porque há efeitos do IVA". "Só o tempo poderá confirmar ou não os meus receios", afirma.
À primeira vista, uma descida de preços na economia poderia parecer uma boa notícia, uma ajuda para que os portugueses enfrentassem melhor a descida de rendimentos que já sofreram e que se irá intensificar no próximo ano. No entanto, por trás dessa vantagem aparente, a deflação esconde perigos bem mais graves, que já foram comprovados no passado durante a Grande Depressão dos anos 30 do século passado ou na crise japonesa iniciada nos anos 90.
Uma deflação prolongada coloca os países numa situação em que, devido a uma expectativa permanente de descida de preços, o consumo das famílias e o investimento das empresas não arrancam, deixando a economia num estado de autêntica depressão.
Será isto que está a acontecer a Portugal? João Rodrigues, investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, acha que sim. "O espectro da deflação é a melhor indicação de que podemos, graças à política de austeridade permanente que comprime a procura, estar a sair da recessão para entrar na depressão", afirma.
No programa de ajustamento acordado entre as autoridades portuguesas e a troika, a história é contada de outra forma e aponta para um final diferente. Aí, a contracção de custos na economia é apenas vista com um passo necessário para que a economia portuguesa reconquiste a competitividade perdida. A fuga a uma espiral depressiva aconteceria neste caso graças ao sector exportador.
Luís Campos e Cunha reconhece o desempenho positivo das exportações, mas teme que isso não chegue por si só para travar a ameaça da deflação. "Como sempre defendi, a competitividade da economia portuguesa para exportar não era um problema e a prova disso tem sido o excelente desempenho do sector", afirma.
João Rodrigues não vê qualquer sinal positivo nas contas externas. "Os últimos dados do INE apontam para uma forte desaceleração do crescimento das exportações, em grande parte devido à replicação das políticas de austeridade nos principais mercados europeus de destino das nossas exportações. A correcção do desequilíbrio externo é feita cada vez mais à custa do colapso do mercado interno", afirma.
Um dos maiores problemas que a deflação traz a um país fortemente endividado como Portugal é que torna ainda mais difícil a amortização da dívida. No seu último relatório, a Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) alerta para este perigo. Um deflator negativo do PIB, contra as previsões do Governo, significa que o PIB nominal vai cair ainda mais do que o projectado, o que faz com que o peso da dívida pública na economia seja ainda maior e, por isso, mais difícil de pagar.
"Se se vier a confirmar tal situação, de facto, ficará mais complicada a tarefa de estabilização das finanças públicas", reconhece Campos e Cunha.
João Rodrigues lembra uma frase do economista norte-americano Irving Fisher, sobre a forma como interagem a deflação e a dívida: "Quanto mais os devedores pagam, mais os devedores devem".
Como uma meada de lã
Um adolescente pode ser como uma meada de lã. Começamos por a olhar sem lhe encontrar a ponta. Depois, descobrimo-la e puxa-mo-la. Pensamos que fomos espertos. Não era fácil, mas ali está a meada a desenrolar-se em direção ao novelo. De repente, ficamos com um fio solto na mão. Ah, estava cortado. Muito bem, recomecemos. Mas onde estará a nova ponta? Cá está. Desta vez, está tudo controlado. Ooops... são afinal uns míseros centímetros de fio. Ora, vamos lá. Agora é que é. Não? Como não? De novo. Mais uma vez. Quinta vez. Décima, vigésima segunda, quinquagésima nona vez. Vezes, vezes, vezes sem conta. Só quando os patinhos, feios e desengonçados, passam a jovens e belos cisnes é que percebemos que valeu a pena passar uma adolescência inteira a desenrolar fios partidos de uma meada, que chegámos a pensar que não teria fim.
Excertos literários da minha vida (49)
Mundo sem fim à vista
O mundo pode acabar hoje, ou pode não acabar nunca. Uma coisa é certa, que o garantem os cientistas da NASA: a 21 de dezembro de 2012 é que não acaba.
Brincando com o/s interesse/s
Há pessoas interessadas. Há pessoas interessantes. Há pessoas que não são interessadas, nem interessantes. Há os que parecem interessantes, mas não têm interesse nenhum. Há aqueles de quem se fala sem percebermos o interesse. Há os que já não nos interessam e os que ainda não nos interessam. Há os que simplesmente não interessam para nada, nem a ninguém. Há os que se interessam por tudo e os que não se interessam por nada. Há os que se interessam por causas, e os que interessam às causas. Há aqueles por quem nem as causas se interessam. Há causas com interesse e causas sem interesse nenhum. Há causas com interesses por trás, e sem interesses por trás. Há quem perceba os interesses em causa, e quem só olhe aos interesses em causa. Há conjugações de interesses e divergências de interesses. Há a tolerância aos interesses e o interesse na tolerância aos interesses. Há quem se rebele contra os interesses. Há os interesses instalados e os interesses visados. Há os interesses sempre considerados, e os eternamente esquecidos. Há interesses velados, e os finalmente revelados. Há os grandes interesses e os pequenos interesses. Há interesses simulados. Há o poder dos interesses, e a força dos interesses. E por aí em diante. Agora, adeus, que há coisas que têm interesse, e outras que não têm interesse nenhum.
Excertos literários da minha vida (48)
"Lembrei-me que quando era miúdo, quando ia para a escola, caminhava pelo passeio obrigando-me a não pôr o pé no sítio onde as lages se uniam. Se conseguisse totalmente corria-me bem uma chamada, ou escrevia uma boa redacção. Mais tarde vi outros miúdos fazerem o mesmo noutras partes do mundo. Talvez exista em cada homem a necessidade instintiva e primordial de, uma vez por outra, se impor limites, fazer apostas com as dificuldades, para depois sentir que «mereceu» algo que desejara."
"Disse-me um adivinho". Tiziano Terzani. Tinta da China. Tradução de Margarida Periquito.
Portugal: outra vez o truque de Deu-la-deu?
Deu-la-deu Martins - Estátua em Monção |
No Séc. XIV, depois de um longo cerco dos castelhanos às muralhas de Monção, a população morria de fome na fortaleza sitiada. Presumindo isso mesmo, os sitiantes esperavam pacientemente a rendição dos portugueses. Com notável sentido de oportunidade, D. Vasco Rodrigues de Abreu, o alcaide-mor de Monção, encontrava-se ausente noutras guerras, pelo que a sua mulher terá pegado nos últimos pães e, atirando-os do alto das muralhas aos inimigos, gritado: "Deus lo deu, Deus lo há dado".
Deu-la-deu Martins teve assim os seus quinze minutos de fama, que valeram a Monção livrar-se dos nossos então arqui-inimigos, convencidos estes de que existia fartura de mantimentos na cidade.
Ouve-se Vítor Gaspar e Passos Coelho, a propósito da não extensão a Portugal das vantagens concedidas à Grécia (mecanismo que, aliás, nem se percebe porquê que não foi negociado em Junho como automático, e não "a pedido") alegadamente em benefício de uma aliás, moralmente indecente, descolagem da Grécia, e pasma-se: mas pensarão eles, conduzidos por sábios conselhos alemães, que estamos no Séc. XIV, em que o fluxo de informação era absolutamente inexistente?
Como é que podemos pretender usar o truque da Deu-la-deu Martins para ludibriar os hiper-informados mercados do Sec. XXI, que sabem com a máxima exactidão a que distância estamos da Grécia? Acresce que, como se sabe, até a história da Deu-la-deu não passa de uma lenda...
Subscrever:
Mensagens (Atom)